RIO. Aos 65 anos, Benny Morris se cansou. O polêmico historiador israelense de língua afiada direciona suas críticas igualmente a Israel e à Autoridade Nacional Palestina (ANP) sem se importar com as críticas. Por anos, foi vítima delas. Afinal, Morris, hoje professor da Universidade Ben Gurion, inaugurou o que se chama de “a era do revisionismo” sionista, quando pesquisadores como ele e Ilan Pappé ousaram revirar arquivos para desconstruir a narrativa romântica da criação do Estado de Israel em 1948. E recorreram aos números para mostrar uma face bem menos bonita da História: perseguição, expulsões forçadas, aldeias árabes inteiras dizimadas e pelo menos 24 massacres cometidos após a partilha da Palestina — sendo o mais famoso deles o de Deir Yassin, próximo a Jerusalém.
Ele é polêmico — e pessimista. Embora tenha condenado as atrocidades cometidas àquela época, ele também diz acreditar que os judeus não tiveram alternativa. Defende a solução de dois Estados para dois povos, mas culpa a ANP pela falta de um acordo de paz que dê fim ao conflito israelense-palestino. Morris esteve no Rio esta semana para lançar seu novo livro “Um Estado, dois Estados” (Editora Sefer) e conversou com O GLOBO.
O senhor no livro descreve muito os movimentos nacionalistas israelense e palestino. O que os define?
Desde 1937, a maioria dos judeus estão prontos para um acordo territorial que permita dois Estados para dois povos. Foi quando o movimento sionista aceitou a ideia da partilha, quando a Comissão Peel, britânica, recomendou a partilha. Mas o movimento nacionalista palestino, desde sua formação nos anos 1920, sempre se opôs à ideia da partilha, exigindo por questões políticas e ideológicas, um governo árabe sobre toda a Terra de Israel. Eles nunca negociaram isso. Desde então, inúmeras vezes a comunidade internacional ofereceu solução baseada em divisão territorial para dois países... A ONU propôs em 1947; no ano 2000, o ex-premier israelense Ehud Barak e o ex-presidente Bill Clinton propuseram a Yasser Arafat; em 2008, foi Ehud Olmert quem propôs a Mahmoud Abbas. Em todas as vezes, o movimento nacionalista palestino rejeitou e exigiu, mesmo que sem dizer sempre publicamente, toda a Terra de Israel, a Palestina, para si só.
E por que eles não estariam prontos para a solução de dois Estados?
Porque eles acreditam que que a justiça determina que toda a Terra de Israel pertence aos árabes, que eles são os moradores legítimos da região. Os judeus, talvez, tenham vivido ali uns milhares de anos atrás, mas eles também rejeitam toda a história da ligação judaica com a Terra de Israel. Entre os que aceitam a história, dizem que isso é uma coisa do passado e não dá aos judeus nenhum direito sobre parte alguma da Terra de Israel; os judeus que vieram para Israel antes de 1882 (ano da primeira grande imigração judaica para a Palestina) são ladrões. A autoridade sionista, o Estado judeu, não são legítimos. A justiça diz que os moradores de Israel não pertencem ao lugar.
Existem resistências também do outro lado, não?! Desenvolveu-se um status quo que, atualmente, é relativamente cômodo para Israel. Como o senhor vê a relação da sociedade israelense com o conflito hoje?
Eu acho que toda pesquisa de opinião feita entre os judeus de Israel desde 1967 mostra que a maioria está pronta para um acordo territorial. É verdade que, em alguns períodos, governos de Israel afastaram a ideia de acordo territorial e defendeu a Grande Israel bíblica apenas para os judeus, como os anos em que o Likud governou, de 1977 a 1984, nos governos de Menachem Begin e Itzhak Shamir. Diria que, de maneira geral, de 1937 até 1977 havia sim a disposição de um compromisso territorial, e essa disposição se renovou com a eclosão da Primeira Intifada, em 1987. E desde 1987, os judeus entendem que é impossível controlar outro povo; que não há desejo de controlar outro povo; que há, sim, justiça nas demandas do outro lado e que é preciso dividir Israel. Até Benjamin Netanyahu, quando foi primeiro-ministro de 1996 a 1999 e rejeitou essas ideias, acabou adotando-as. Dois Estados para dois povos é a base da política israelense do governo. É verdade que no governo atual há gente que ainda defende a Grande Israel bíblica, mas isso não representa a visão política do governo.
Isto é curioso, pois desde o assassinato do premier Itzhak Rabin, não temos mais ouvido o bloco pacifista israelense, mas apenas vozes mais radicais...
Não diria isso. Eu diria que se ouvem mais alto as vozes mais radicais. Mas ainda existe um campo pacifista, ainda existe a chamada maioria silenciosa, uma ampla maioria a favor de um acordo territorial. Existe também uma minoria grande, uns 30%, 35% que ainda defendem a Grande Israel bíblica. Mas são uma minoria.
A ocupação alimenta nos últimos um movimento internacional de boicote a Israel. Mas, pela primeira vez, nas últimas semanas, o governo se reuniu para discutir isso. Essas iniciativas podem ter algum impacto sobre Netanyahu ou sobre as negociações de paz?
Eu espero que sim! Eu acho que o governo de Israel acordou tarde demais para o perigo da deslegitimização, que se faz através de boicotes à economia, à academia ou a Israel como um todo. Acho que o boicote representa um perigo grande tanto para a economia quanto para o país. Que bom que finalmente o governo dá atenção a isso, e eu espero que consigam fazer o governo chegar a um acordo. Falo principalmente sobre um acordo sobre os assentamentos, que sempre foram um obstáculo à paz. Não acho que o maior obstáculo, mas um dos maiores. Netanyahu ajudaria se congelasse as construções durante as negociações, mas ele não fez isso até agora.
Israel sempre usa alegações de antissemitismo ou de que alguns países do Ocidente se posicionam deliberadamente contra ela. Por quê?
É confortável falar isso, mas nem sempre verdade. Existe uma dose de antissemitismo em algumas partes do mundo, principalmente em países árabes e muçulmanos, onde se vê o aumento não só do anti-Israelismo, mas do antissemitismo. No Ocidente, Israel pode ser um escudo para o antissemitismo: não se pode falar mal dos judeus, pois é politicamente incorreto, mas se pode falar mal de Israel. Mas eu vejo outros motivos históricos para isso para essa antipatia a Israel. Existe um peso na consciência dos europeus, por exemplo, por tudo o que fizeram em suas ex-colônias, no Congo, na Índia e em tantos outros lugares. O Ocidente ocupou e oprimiu muito mais que Israel no passado recente. Eles sentem culpa de seu próprio passado imperialista e jogam essa culpa sobre os judeus ou sobre Israel. Devo dizer também que o comportamento de Israel, dos soldados de Israel, nos territórios palestinos em épocas específicas, contribui para a antipatia pelo país e para o repúdio ocupação. Israel tem parte da culpa pela antipatia de parte da imprensa e dos governos ocidentais.
Quando olhamos para a Cisjordânia hoje, vemos uma colcha de retalhos por conta não só dos assentamentos em si, mas de toda a infraestrutura ao redor. Ainda é de fato relevante falar na solução de dois Estados? Sem falar em Gaza, desligada do outro lado. É viável?
Sobre Gaza, eu devo advertir que o isolamento é causado por dois lados, de Israel e do Egito. Mas sobre a Cisjordânia... Se é realista... Vamos esperar que sim, porque não há outra solução. Um Estado binacional não vai emergir; judeus e árabes provaram aqui nos últimos 100 anos que não podem viver juntos. Os judeus rejeitaram essa ideia nos anos 1920 e 1930; e os árabes sempre. Eles se recusam a cooperar com um governo controlado por judeus. O Estado binacional não existe nem no inconsciente dos dois lados. Concordo que a janela está se fechando, a realidade está tornando a partilha cada vez mais complexa por causa dos assentamentos. Mas reitero: esse não é o problema principal, o maior problema é os árabes não estarem prontos para dois Estados. Se eles não aceitarem esta ideia, a ocupação parcial da Cisjordânia vai continuar. Vamos continuar ocupando um povo, o status quo será mantido, e isso é o pior que pode acontecer para todo mundo.
É verdade que este é seu último livro sobre o conflito israelense-palestino?
Não sei se é verdade (risos). Mas é verdade que eu disse isso. Eu disse que não pretendo no futuro escrever outro livro sobre o conflito. Já há alguns anos, o conflito turco-armênio é meu foco de estudos, e até 2016 estarei terminando um projeto nessa área com outro colega. Talvez eu consiga cumprir o que disse, talvez me sinta tentado a escrever novamente, não sei...
Então o senhor cansou do conflito israelense-palestino?
Claro! Estou de saco cheio. Cansei como cidadão e como pesquisador. Acho que não há mais nada novo a desvendar, o que aprendi, publiquei em oito, nove livros e é isso. A minha parte eu já fiz.