Prefácio da 1ª Edição
Em todas as épocas, a Torá - fonte essencial da religião judaica - tem sido a base da unidade espiritual de Israel, e esta unidade é que tem dado a este, a força necessária para a sua sobrevivência. Por conseguinte, o estudo da Torá foi sempre um dever primordial para os adeptos da nossa religião.
Analisando a literatura judaica em português, verifiquei que faltava a tradução da LEI DE MOISÉS neste idioma, isto é, uma tradução fiel às interpretações dos nossos exegetas, os quais se inspiraram na Tradição, no Talmud e no Midrash.
Esta obra, posso afirmá-lo, é única em seu gênero, pois que as traduções da Bíblia em português que examinei, quase todas se limitam a traduzir as palavras etimologicamente, deixando de lado o mais importante: o sentido que lhes deram os nossos doutores da Lei.
Esta tradução e os comentários que a acompanham têm como base as opiniões dos exegetas, tais como: Rabi Shelomo Yits?chaki (Rashi), Onkelos (Targum), Rashbam, Baal Haturim, Daat Zekenim Mibaale Hatossafot, as do Talmud e as do Midrash; também foram consultadas obras modernas de alguns comentaristas, escritas em vários idiomas, tais como "Varietés Homilétiques", do Rabino M. Wolff, e outras; por fim, a opinião, explicações e comentários do próprio autor, em sua qualidade de rabino ortodoxo e conservador.
A extrema dificuldade deste trabalho, assim realizado, e sua grande importância não passarão despercebidas aos que possuem o conhecimento profundo do texto original. Em suma, esta é uma obra de fé, baseada nos ensinamentos dos grandes mestres do judaísmo.
Hoje, mais do que nunca, me parece necessário divulgar, especialmente à nova geração, que só utiliza o idioma do país, o conteúdo da nossa mais Sagrada Escritura, para que saiba alguma coisa do que o judaísmo tem dado espiritualmente ao mundo, da sua história e da sua missão, como descendente do povo de Israel.
Conforme a Tradição, o profeta Moisés explicou a Torá em setenta idiomas (Rashi, Deuteronômio 1:5 e 27:28); e o Talmud (Sotá 35) nos diz a razão: "Para que as nações do mundo possam copiá-la", pois que, além de nós mesmos, todos devem conhecer a verdade sobre o conteúdo da LEI DE MOISÉS e a sua moral elevada. Se homens como mulheres, jovens como adultos, pessoas imparciais de todos os credos e amigos da verdade tirarem proveito deste livro, elaborado com boa fé, isto será minha recompensa.
Rio, Tishri 5723 - setembro 1962
Rabino Meir Matzliah Melamed
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A TRADUÇÃO DO PENTATEUCO
Tem havido grande número de traduções totais ou parciais da Bíblia: desde o famoso Codex de Alcobaça até, em nossos dias, a tradução brasileira. Algumas com extensos comentários, como a de Figueiredo. Dentre as traduções parciais convém destacar a dos Salmos de Santos Saraiva, com o título A Harpa d?lsrael. Esta tradução foi feita diretamente do hebraico acompanhada de excelentes comentários. O certo, porém, é que todas elas padecem das dificuldades decorrentes da natureza desse famoso livro. Escrito em várias épocas, apresenta arcaísmos no seu contexto, por vezes tão obscuros que têm dado margem até a interpretações cerebrinas, e mais de uma vez, provocaram sérias controvérsias.
A obra do Rabino Matzliah, A Lei de Moisés, é a tradução dos cinco livros de Moisés, ou Pentateuco. Os pontos obscuros foram cuidadosamente estudados à luz da Tradição, quando a gramática e significado não correspondiam a um sentido perfeito do assunto explanado.
A palavra hebraica, como em todas as línguas, sofreu no correr dos séculos modificações semânticas de tal porte que, em certos trechos, seria um contra-senso traduzi-las pelo seu sentido da época da redação definitiva do livro. Das quatro formas de tradução cuja sigla é "PaRDeS", ele preferiu o pexat, isto é, o sentido literal. Mas aí é que se revela o tradutor, porquanto o significado das palavras varia. O Rabino Matzliah conseguiu encontrar nesses casos o verdadeiro significado como deve ser compreendido na estrutura da frase, desatando assim as inúmeras dificuldades que comumente se deparam ao tradutor.
Naturalmente o ilustre Rabi recorreu não só à língua hebraica, de que é excelente conhecedor, como também aos grandes Mestres do Talmud e da Tradição, assim como da vastíssima literatura rabínica para conseguir afinal esclarecer as dúvidas ocorrentes em tais trechos.
Os Profetas que se leem na Sinagoga depois da Parashá aí estão representados nos excertos para esse fim selecionados, também foram traduzidos com esmero. Entre esses trechos se encontram as chamadas Haftarot de Consolação, extraídas de lsaías, as quais apresentam dificuldades que são, por vezes, insuperáveis. Contudo, o Rabino Matzliah soube ultrapassar os escolhos e apresentar uma tradução certa e compreensível. Agora, o israelita brasileiro pode com segurança acompanhar na Lei de Moisés a leitura das Parashiot, e também das Haftarot que se recitam aos sábados nas Sinagogas.
Em suma, este trabalho está destinado a representar no Brasil e para a língua portuguesa o que a tradução do Pentateuco do Grão Rabino L. Wogue representou para a língua francesa no século passado, ainda hoje consultada com proveito.
Rio de Janeiro, setembro de 1962
David José Pérez
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Prefácio à nova edição
“Lembrai-vos da LEI DE MOISÉS, Meu servo,
a quem ordenei, em Horeb, estatutos e leis para todo o Israel.” (Malaquias 3:22)
Eis que havia um reino muito próspero, vizinho de um outro muito pobre. Enquanto no primeiro o solo era generoso e proporcionava fartas colheitas sem grandes esforços dos lavradores, o segundo tinha um solo árido que obrigava seu povo a uma árdua labuta para se alimentar e sobreviver.
Os reis do primeiro, no entanto, sofriam de profunda tristeza por não terem herdeiros. Até que um dia, após muitos anos, divulgou-se a feliz notícia de que um herdeiro ou herdeira nasceria dentro de alguns meses. Uma imensa alegria inundou o coração de todos os súditos, deixando os futuros pais radiantes de felicidade.
Convocados pelos soberanos, os sábios do reino se puseram a elaborar previsões para o futuro do herdeiro real, e todos aguardavam ansiosamente seu pronunciamento. Os sábios, no entanto, hesitavam em apresentá-lo, mas, instados pelo casal real, relataram finalmente as tristes conclusões a que haviam chegado.
Os sábios fizeram a seguinte declaração: “A rainha dará a luz uma menina e prevemos que ela não será feliz, porque há de casar com alguém que não lhe dedicará amor algum. O interesse de seu esposo estará totalmente voltado para o trono, do qual ele logo procurará apoderar-se.”
O rei, então, decidido a evitar que tal previsão se tornasse realidade, conclamou os sábios a buscar meios para evitar sua realização. Ouvindo atentamente seus conselhos e colocando-os em prática, o rei fez construir, ao lado do palácio real, aposentos isolados de todos os demais. Assim que a princesa nasceu, ela foi levada a estes aposentos, aos quais só tinham acesso seus preceptores e seus pais.
Conseqüentemente, a princesa cresceu sem que ninguém pudesse vê-la e, ao atingir a idade em que deveria se casar, uma proclamação foi enviada a todos os reinos, informando que a mão da princesa seria dada em casamento àquele que aceitasse duas condições: a princesa só poderia ser vista após o casamento e ela seria deserdada imediatamente após a cerimônia.
A princípio, ninguém se interessou por tal casamento, pois todos imaginavam que a princesa era tão feia que o rei tinha receio de que qualquer pretendente desistisse do casamento ao contemplá-la. Também era uma crença geral de que a princesa deveria ser uma filha desobediente que irritou seu pai de tal forma que este decidiu deserdá-la.
O príncipe do reino vizinho, no entanto, analisava a situação de forma diferente. “Esta princesa”, pensava ele , “deve ter sofrido muito por ser tão feia e tão pouco amada por seus pais. Este sofrimento deve ter sensibilizado seu coração, tornando-a capaz de compreender e amar meu povo, que é também tão sofrido.” Então, ele resolveu aceitar o casamento, o qual se realizou sem nenhum festejo.
Os súditos do príncipe pensavam: “Coitado, vai se casar com uma princesa tão feia!” Os súditos da princesa ponderavam: “Quem sucederá ao nosso rei?”
Após a cerimônia, o príncipe teve a mais grata das surpresas ao conduzir a princesa para seu novo lar. Ela era bela, inteligente, meiga e instruída. Logo mostrou-se capaz de dialogar com cada um dos súditos, tornando-se amada por todos. A princesa também soube aplicar a ciência que seus preceptores lhe haviam transmitido para orientar os ministros, os quais, utilizando-se de seus conselhos, conseguiram encontrar novas formas de tratar o solo e alcançar colheitas tão boas como jamais haviam ousado pensar.
A alegria e a felicidade do príncipe cresciam a cada dia e, após algum tempo, levaram o príncipe a realizar a festa que não fora celebrada na ocasião do casamento. Dessa forma, ele permitiu que todo o povo participasse e manifestasse sua satisfação pela maravilhosa transformação que a vinda da princesa provocara.
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Esta história baseia-se em uma parábola contada pelo Maguid de Dubno para explicar porque recebemos a Torá em Shavuót e somente seis meses depois, em Sucót, é que realizamos uma festa de imensa alegria – Simchat Torá – para expressar toda a felicidade que sentimos pela sua outorga.
Quando recebemos a Torá, não conhecíamos seu conteúdo. Sabíamos apenas que era uma dádiva divina e ante isso proclamamos Naassê Venishmá – cumpriremos e escutaremos. Com reverência e respeito, recebemos os mandamentos transmitidos por Hacadosh Baruch Hú, por meio de Moisés, sempre dispostos a cumprir todas as suas determinações.
No entanto, à medida que as leis eram explicadas ao povo, este percebeu que elas forneciam a chave não para alcançar a grandeza material dos impérios pagãos existentes na época, mas sim para dar significado a todos os momentos de sua existência, proporcionando a este mesmo povo a incomparável felicidade de se viver segundo os preceitos da Torá. Diante desta percepção, surgiu a necessidade de dar vazão à alegria que contagiou a todos, o que foi feito na festa de Simchat Torá, onde todos dançam e cantam com entusiasmo e agradecem ao Eterno sua dádiva incomparável.
A Torá tornou-se a base legislativa de todos os povos do mundo ocidental. Mesmo as religiões derivadas do judaísmo continuaram a cultuá-la. Ela foi traduzida para quase todas as línguas, embora algumas traduções não tenham mantido o sentido correto das palavras hebraicas do texto original.
A primeira tradução portuguesa verdadeiramente judaica, elaborada por um rabino de conhecida erudição, é a que reeditamos neste volume, acrescida de comentários do tradutor, dos editores e do saudoso rabino Diesendruck. Esta tradução manteve-se fiel ao texto hebraico, ainda que algumas vezes a formação das frases em português possa parecer estranha.
Nassê Venishmá. Nassê – cumpriremos. Através de séculos de penosos caminhos de sua história, o povo judeu dedicou-se a cumprir os mandamentos Divinos acima de qualquer outra coisa. Nishmá – escutaremos. Na realidade o sentido aqui é mais de “estudaremos” do que de “ouviremos”. Temos, portanto, a missão de buscarmos, dentro do limitado nível da percepção humana, a compreensão dos textos Divinos a nós transmitidos pelo maior profeta e líder que já viveu – Moisés, nosso mestre.
Em cada geração, foram escritos dezenas e dezenas de livros de comentários que objetivavam uma melhor compreensão da Torá. Muitos foram os que dedicaram toda a sua vida ao estudo desta obra divina. Em nossa edição procuramos selecionar um pequeno número de comentários entre os muitos existentes. Acreditamos que esta pequena seleção de comentários poderá trazer esclarecimentos aos leitores, assim como motivá-los a aprofundar seu conhecimento por meio de grandes autores, tais como Rashi, Maimônides, Nachmanides, Sforno, Nechma Leibowitz, Cassuto, Malbim e muitos outros.
Que o Eterno inspire cada componente de Am Israel a reafirmar através de sua vida o lema de Nassê Venishmá: “cumprirei os mandamentos do Eterno e buscarei iluminar minha vida através de sua compreensão.”
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Os Editores ativeram-se à tradução original e precisa do rabino Matzliah Z"L dos textos sagrados (mas não dos comentários), resistindo à tentação de modificar e simplificá-la em nome da modernização. Sem dúvida poderiam ter substituído, por exemplo, “E falou o Eterno a Moisés” por “O Eterno [sujeito] falou [verbo] a Moisés [objeto indireto]”. O texto ficaria mais claro, direto e moderno. Mas, além do fator subjetivo – o de se sacrificar o “sabor hebraico” que impregna o texto de forma tão marcante –, decidiram mantê-la por ser a única no mercado editorial brasileiro realizada diretamente do hebraico e de acordo com a milenar interpretação dos mestres do Talmud. Mas foi preciso atualizá-la, atendendo às transformações sofridas pela língua portuguesa desde sua publicação, há 39 anos, quanto à gramática, acentuação, regência, concordância e pontuação.
Além disso, determinadas palavras de compreensão mais difícil, ou arcaicas, foram substituídas por outras, mais conhecidas e modernas. Para os nomes próprios, foi adotada a sua forma hebraica, exceto os “consagrados”, mantidos em sua forma latina já conhecida. Quando necessário, a forma hebraica (ou latina) dos mesmos é citada entre colchetes. Todavia, em alguns casos, em que se comprometia a compreensão, não hesitaram em inverter o sujeito com o predicado ou alterar uma complicada forma verbal por outra mais simples. Foram também corrigidas imprecisões e antigas falhas de editoração apontadas por leitores atentos. Esperamos que se dê a mesma atenção a esta nova edição. Assim, cada vez mais, esta obra se aproximará da perfeição.
Tendo ao lado o moderno texto hebraico da famosa Editora Vagshal, de Jerusalém, os leitores poderão constatar como o saudoso rabino Matzliah se manteve fiel ao texto bíblico e aos exegetas clássicos, especialmente Onkelos (a tradução aramaica da Torá) e Rashi. Ou mesmo aperfeiçoar seu estudo do hebraico, pois há uma perfeita sincronia entre os textos hebraico e português.
Nesta edição, os Editores também consideraram os Teamê Hamicrá (sinais de vocalização musical) para fins de pontuação, e deixaram certos “espaços” no texto, de acordo, aliás, com os “espaços” em branco (Parashá Petuchá e Setumá) de um rolo da Torá convencional, segundo a tradição massorética. Ainda colocaram entre aspas as orações diretas de Deus, embora toda a Torá seja a expressão da palavra de Deus Altíssimo.
A compilação e redação dos comentários acrescentados a esta edição seguiram o mesmo critério do saudoso rabino Menahem M. Diesendruck Z”L para elaborar as mensagens, extraídas de sua obra Sermões e citadas neste livro sob a abreviatura MD. Como esta, por exemplo: “O objetivo elevado e sagrado das nossas interpretações das Parashiot é ilustrar e comentar os eternos ensinamentos da sagrada Torá à luz do pensamento moderno, mas fiéis às eternas e velhas prescrições da Torá escrita e oral, transmitindo-as às novas gerações em roupagem atualizada, demonstrando assim aos jovens que nos leem a veracidade, perpetuidade e imutabilidade da Torá que consideramos Torat Chayím, doutrina de vida.”
Os Editores também apresentam comentários sobre passagens consideradas “controvertidas” e “nebulosas”, e foram além de uma única linha interpretativa, dentre as muitas possíveis. Procuram trazer aos leitores informações e sínteses exegéticas dos grandes mestres do judaísmo de várias épocas. Em vez do detalhe técnico e específico, que pode ser encontrado em obras mais profundas e destinadas ao público interessado, priorizam a atualidade dos eternos ensinamentos da Torá. Os Editores esforçaram-se em revelar, principalmente para a sociedade contemporânea em busca de ideais e valores em que possa pautar sua conduta e convivência harmoniosa, o sentido de esperança que emana dos ensinamentos bíblicos.
As observações com a letra E (de Editores) entre parênteses diferencia-as das análises sutis do rabino Matzliah Z"L (sem abreviatura) e das do rabino Diesendruck (MD). Além disso, as fontes consultadas compõem a bibliografia deste livro.
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Se, por intermédio desta obra, conseguirmos irradiar para a Humanidade um pouco da imensa luz da Torá e, assim, banir um pouco a escuridão, o ódio e a intolerância que ainda existem em nosso planeta, nosso esforço terá sido compensado, e nossa missão, cumprida.
São Paulo/Rio de Janeiro/Porto Alegre/Belém, Tevet 5761 - janeiro 2001.
Os Editores