PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA
O Rabino Moshe Chaim Luzzatto, o Ramchal, assim conhecido por suas iniciais em hebraico, foi uma das figuras mais extraordinárias da nossa história. Nascido em Pádua, na Itália, em 1707, revelou ainda criança sua verdadeira genialidade no estudo da Torá. Aos 11 anos de idade, já dominava totalmente o Talmud e, aos 14, escreveu o livro Lashon Limudim. Também muito jovem, exatamente aos 13 anos, mergulhou no estudo da Cabalá a partir das obras do Ari Z”L, e seu talento fez com que se tornasse um dos grandes cabalistas de todos os tempos.
Como havia ocorrido séculos antes com Maimônides, também o Ramchal foi um dos eruditos mais polêmicos e discutidos de sua geração. Sua extrema capacidade, especialmente no campo do misticismo judaico, chegou a levantar desconfiança entre os estudiosos, pois vivia-se a época posterior à dos falsos messias – Reuveni na Itália e Shabtai Tsvi na Europa Oriental – e as desastrosas deturpações espirituais que produziram ainda traziam à tona a profunda cautela da comunidade rabínica.
O Ramchal integrava o grupo erudito Mevakshei Hashem, de Pádua, que dedicava-se ao serviço Divino e ao estudo da Cabalá. Neste ambiente estimulante, escreveu livros não só defendendo o estudo do misticismo judaico mas, também, obras como Adir Bamarom e Daat Tevunot, que abordam os mistérios da Providência Divina, da salvação e dos Meshichim. A natureza inovadora e rica de seu trabalho levou outro membro do grupo a mencioná-lo, talvez de modo algo descuidado, em uma carta enviada a um sábio de Vilna, o Rabino Mordechai Yafe. O Rabino Moshe Haguiz, de Altuna, outro famoso sábio da época escreveu aos sábios de Veneza, exigindo que acabassem com os “perigosos” Mevakshei Hashem e, também, aos rabinos de Ancona, para que investigassem o Ramchal “da cabeça aos pés”, pois havia sido informado de que ele, o Ramchal, receberia mensagens de um Maguid (anjo) que, por sua vez, lhe revelaria segredos místicos.
As cartas fizeram com que os líderes religiosos italianos se dirigissem ao mestre do Ramchal, o Rabino Yaacob Bassan, pedindo-lhe que limitasse as atividades de seu jovem e brilhante discípulo. Em consequência, o Rabino Moshe Chaim Luzzatto foi obrigado a assinar um documento permitindo que seus trabalhos fossem escondidos e comprometendo-se a “parar de estudar com o Maguid.
Não foi o bastante. As sanções da comunidade rabínica local contra o Ramchal continuaram até tornarem-no objeto de um Cherem, ou carta de excomunhão. Nesta situação dolorosa e injusta, ele deixou Pádua e seguiu para Amsterdã, esperando encontrar um ambiente receptivo às suas ideias e ao seu trabalho. Apenas mais tarde se tornaria claro que o alto rabinato da Itália e de alguns outros países europeus havia se deixado tomar pelo medo frente à postura inovadora do Ramchal, e que, na verdade, era um ilustre estudioso que viria a iluminar o caminho de gerações futuras.
Dentro do contexto religioso da época, não é impossível compreender-se as razões que determinaram intolerância e medidas extremadas contra o Ramchal. O risco da difusão de um misticismo pernicioso supostamente “judaico” ainda tumultuavam os meios rabínicos. Mas, com o tempo, a verdade emergiu mais forte do que nunca, e o Ramchal foi consagrado como um dos sábios mais importantes de todas as gerações. Seus livros são tratados até hoje como fontes de referência no estudo da nossa Torá.
Como muitos dos líderes da nossa história, o Ramchal acalentava o sonho de morar na Terra de Israel, para poder se aproximar ainda mais de Deus. E assim fez, indo morar na cidade de Aco. Porém, três anos depois de sua chegada, faleceu precocemente aos 39 anos de idade, sendo enterrado na cidade de Tiberíades, ao lado do túmulo do Rabi Akiva.
Críticas aos Sábios da sua Geração
Ao mesmo tempo em que se defendia com humildade (em carta ao seu mestre, o Rabino Yaacov Bassan) das acusações feitas contra sua pessoa e seus objetos de estudo, o Ramchal avaliava a situação espiritual de sua geração. Dizia que os homens se dedicavam ao estudo , mas não à essência da vida. Mesmo os mais religiosos e sábios não procurariam a verdadeira integridade e a profunda devoção a Deus. Mas, em vez de simplesmente criticar e atacar, respondeu aos seus antagonistas escrevendo o magistral Messilat Iesharim, em português “O Caminho dos Justos”.
Sobre o Livro
O Ramchal escreveu o Messilat Iesharim aos 33 anos de idade. Trata-se de um programa de vida dividido em etapas, dirigido aos que aspiram aprofundar sua devoção a Deus da forma mais pura. O livro foi aceito com o mesmo entusiasmo por religiosos ashkenazitas – inclusive os Chassidim – e sefaraditas.
O livro aborda todos os passos do homem ao longo da trilha que conduz a Deus, sem deter-se em considerações filosóficas ligadas à Divindade, tão comuns nas obras de estudiosos da Idade Média. Com rara sabedoria, porém, o Ramchal inclui tais considerações nas entrelinhas das descrições dos meios para se alcançar o aperfeiçoamento espiritual.
“O Caminho dos Justos” baseia-se no ensinamento do tanaíta Rabi Pinchas ben Iair, segundo o qual “O estudo da Torá leva à precaução; a precaução leva à presteza; a presteza leva à integridade... a santidade leva à inspiração Divina, e a inspiração Divina leva à ressurreição dos mortos”. O ensinamento começa falando de virtudes morais e termina com uma afirmação de caráter místico. Mas o Ramchal deixou a mística explícita fora deste livro, talvez devido à pressão que sofrera ainda em Pádua, talvez nos mostrando que, antes de se aproximar do universo do misticismo judaico, o homem já deve ter atingido o ponto máximo de seu aperfeiçoamento ético e moral. (Os Rabinos Iehuram, de Mir, e Yits’chac Hutner, eruditos da geração passada, afirmam, no entanto, que conceitos da Cabalá fazem parte de Messilat Iesharim, ainda que de maneira não explícita.)
O livro agrega referências das mais variadas fontes de nossa tradição, como o Talmud e o Midrash. É clara também a influência dos escritos de Maimônides em diversos conceitos, ideias e até em alguns termos utilizados pelo Ramchal. São famosas as palavras do Gaón de Vilna: “Se o Ramchal estivesse vivo , iria a pé visitá-lo e dele aprender o Mussar e a aquisição das virtudes”. Segundo o Gaón, que ao ler Adir Bamaron vestiu roupas festivas e afirmou que o Ramchal havia entendido a verdadeira profundidade dos escritos de Ari Z”L, o Messilat Iesharim seria o melhor dos livros do Mussar, sem conter sequer “uma única palavra supérflua”.
Referências honrosas não faltam ao livro. Conta-se que o Rabino Chaim de Volojin, fundador da famosa Yeshivá, ao despedir-se de seu aluno, o Rabino Zundel, de Salant, disse-lhe: “Messilat Iesharim deve ser sua bússola.” O Rabino Israel de Salant, aluno do Rabino Zundel e precursor do movimento do Mussar, encontrou no livro um dos alicerces básicos de sua doutrina.
Várias ideias e abordagens do Messilat Iesharim foram mais tarde desenvolvidas por importantes líderes chassídicos. O Maguid de Koznitz, autor do livro Avodát Israel; o Rabino Menachem Mendel, de Riminov, e o o Rabino Ohev Israel, de Apt, viram o livro como um valioso guia para a busca da perfeição do caráter e da alma. Empolgação semelhante foi demonstrada pelo Rabino Tsvi Elimelech, de Dinov, um dos grandes nomes do Chassidismo e autor do livro Bne Issasschar.
A Versão Atual
A primeira versão do Messilat Iesharim foi publicada sob a forma de um diálogo entre um sábio e um Tsadic, uma discussão sobre o caminho que leva à verdade. A inspiração veio de outros livros do Ramchal, nos quais ele lançou mão do mesmo recurso de perguntas e respostas. Em busca de maior fluência e melhor compreensão dos temas abordados, a edição atual, escrita dois anos depois, foi dividida em capítulos, cada um deles contendo as etapas, ou os “degraus que levam à elevação espiritual” originalmente sugeridos pelo autor.
A forma original ficou desconhecida durante 240 anos mas pode-se notar claramente o paralelo entre os dois textos.
Sobre o Conteúdo
É necessário frisar que este é um livro de estudo e não de leitura. E, como o próprio autor nos lembra na introdução original, o proveito virá após leituras e revisões sucessivas. É supérfluo dizer que o Messilat Iesharim é um manual prático de moral e ética judaica, destinado a modificar nossa maneira de pensar e de agir, sempre com o objetivo de nos aperfeiçoar espiritualmente.
É importante também ter em mente que os níveis – ou “degraus” – mais elevados da escala espiritual podem não ser aplicáveis a todas as pessoas. O leitor observará que, no início do capítulo 13, o Ramchal nos diz: “Até aqui escrevi o necessário para o justo. Daqui em diante escreverei para o Chassid (aquele que vai além da obrigação). Em síntese, a primeira parte do livro trata do que é exigido de cada um de nós. A segunda parte dirige-se aqueles que querem elevar-se ainda mais e conhecer uma maior aproximação com Deus.
Embora o livro descreva vários degraus, ou etapas, não devemos aguardar a consolidação de cada uma delas dentro de nós para lermos a seguinte. A razão é tão bela quanto verdadeira: por estarmos constantemente galgando os degraus da escada das virtudes em busca de nosso aperfeiçoamento espiritual, é possível nos encontrarmos simultaneamente em mais de um degrau, graças à capacidade abrangente e dinâmica da nossa alma que busca um contato mais amplo e profundo com Deus. Por outro lado, abrindo mão de qualquer postura que se assemelhe a julgamento, é essencial descobrirmos e aceitarmos até onde podemos chegar – inclusive para que os capítulos iniciais, os primeiros passos, sejam realmente apreendidos em toda sua seriedade.
Sobre esta Tradução
Toda tradução é uma arte e, como toda arte, é um trabalho árduo. Isto se torna duplamente verdadeiro quando o livro em questão é um livro como o Messilat Iesharim, elaborado a partir de ideias profundas e enriquecido por citações e menções a fontes que, supostamente, são familiares ao leitor – o que nem sempre corresponde à realidade.
Por isto, a tradução original foi revisada e adaptada de forma a chegar ao coração e ao intelecto do maior número possível de leitores, inclusive aqueles que desconhecem o Talmud e o Midrash. É desnecessário ressaltar que a fidelidade ao texto do Ramchal foi mantida no sentido mais estrito do termo. Houve momentos, porém, nos quais a ordem das palavras de uma sentença, por exemplo, teve que ser mudada em nome das características de nosso idioma. Mas procuramos sempre identificar a verdadeira intenção de cada termo usado pelo autor. Esperamos sinceramente ter conseguido.
Em muitas passagens, chegamos a comparar nossa tradução com o trabalho do Rabino Chaim Passy (de cuja tradução integral só tomamos conhecimento após a finalização desta edição), feito em homenagem às almas de Chaim ben Shemuel (Passy) Z”L, Frida bat Hava (Passy) Z”L e Iehuda ben Iossef (Kalili Boukai) Z”L. Agradecemos imensamente sua colaboração.
Apesar de todos os cuidados, porém, é possível que a tradução, feita do inglês, contenha palavras ou trechos que levem a interpretações não exatas. Diversas revisões e comparações foram realizadas mas, mesmo assim, talvez tenham ocorrido pequenos enganos. Por eles, nos desculpamos antecipadamente perante o leitor.
Esperamos que o estudo de todos aqueles que se aprofundarem neste livro traga a paz e a calma na Terra de Israel, e o fim das feridas do povo de Israel , com a época da Salvação em breve, em nossos dias. Amén.
Nissan 5762.
Rabino Raphael Shammah
Bibliografia:
“Mussar Viyud”, Meir Myara, 1997, Jerusalém.
“Or Haganuz”, Mordechai Shenki, 1996, Jerusalém.